09 março 2006

SOBREVIVÊNCIA A trama de Matrix é uma adaptação para o universo pop e tecnológico do gnosticismo

ARTIGO PUBLICADO NA REVISTA ÉPOCA EM FEVEREIRO


A religião de Matrix

Ivan Padilla e Marcelo Musa Cavalleri




O mundo é uma ilusão digital, Jesus conhece o software e Judas é seu ajudante


O mundo é uma prisão. Foi criado por uma entidade inferior má e mantém o homem aferrado a uma ilusão sem perceber sua verdadeira natureza. O conhecimento permite acordar dessa espécie de pesadelo e viver a vida verdadeira. Essa é a linha mestra da doutrina dos gnósticos. É difícil identificar a origem dela. Junta elementos judaicos, persas, egípcios. Tudo reinterpretado à luz de sua própria concepção. No século II, eles já eram um grupo forte e organizado e disputavam com outras comunidades cristãs a interpretação correta dos eventos ligados a Jesus. Na disputa pela hegemonia dentro da comunidade, os gnósticos produziram boa parte dos escritos apócrifos, livros falsamente atribuídos a vários personagens bíblicos.
O Evangelho de Judas é um desses escritos. Foi produzido por uma seita especialmente radical dos gnósticos, conhecida como cainita. A entidade criadora má era identificada, pelos gnósticos, como o Deus criador do Antigo Testamento. Como ele era o autor das leis morais que os cristãos herdaram dos judeus, ser contra essas leis era, para os cainitas, uma obrigação. Assim, Caim, o amaldiçoado por Deus por ter matado o próprio irmão, era visto como um libertador. Judas também. E Jesus, que para os gnósticos era um enviado do Deus verdadeiro e bom, superior ao Deus falso e mau do Antigo Testamento.
O gnosticismo foi logo posto à margem do cristianismo hegemônico como uma heresia, um desvio da doutrina aceita. Mas conheceu versões atualizadas ao longo do tempo. Reapareceu na Europa medieval, entre pensadores renascentistas e nas sociedades secretas do século XVIII. Em larga medida, esotéricos contemporâneos como Madame Blavatski e Rudolph Steiner, o idealizador da antroposofia, são tributários das doutrinas gnósticas.
Mas nem todos os apócrifos conhecidos são obras de hereges. Muitas das tradições cristãs mais conhecidas popularmente estão em textos que ficaram de fora dos escritos aceitos na Bíblia, os chamados livros canônicos. A conhecidíssima imagem do presépio, por exemplo, só fica completa com a contribuição dos apócrifos. A presença da vaca e do burro que, com sua respiração, aquecem o Menino Jesus não consta de nenhum Evangelho canônico. Nem a história de Verônica, a mulher que enxugou o rosto de Jesus enquanto ele carregava a cruz e fica com a imagem dele impressa no pano. Os reis magos são três por causa dos apócrifos, também as únicas fontes para seus nomes: Baltazar, Gaspar e Melchior. Os nomes dos pais de Maria, Joaquim e Anan, santos festejados oficialmente pela Igreja Católica, também só constam de escritos que acabaram ficando fora da Bíblia.

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